O objeto? Ou o reflexo? Qual é o objeto desta foto?
Fui aprendendo a escrever com a direita, a direita preponderou pelo hábito e muita coisa que pensamos em nós serem “de nascimento” são hábitos adquiridos muito cedo. Desenhei, escrevi, liguei e desliguei as coisas com a mão direita.
Há muitos anos, entendendo como nós nos tornamos o que somos por camadas sobre camadas de treinamento, tantas que acreditamos serem as camadas mais antigas e profundas dons, características orgânicas de nascimento. Comecei a buscar em mim atos que contrariassem esse treinamento de vida exatamente para ver o quanto eram inatos, o quanto eram adquiridos. Mudei algumas coisas, embora não muito, pois mais queria viver com a certeza da opção do que treinar um corpo/mente pluri-capazes.
Há mais ou menos uns 20 anos comecei a fazer a barba com a mão esquerda. Isto era simples, era um ato isolado, juntava atenção e perícia. Fazer com a mão esquerda não afetaria minha vida, mas me mostraria o grau de dependência verdadeiro relativo ao treinamento.
Tornei-me plenamente hábil em fazer a barba com a mão esquerda. No início era lenta, era estranho fazer, exigia grande atenção, mas foi ficando solto, foi ficando natural de modo que hoje faço a barba com a mão esquerda todo dia, há quase 20 anos faço com a esquerda e na maior parte dos anos, tirando um breve início disso de menos de dois meses, faço tão naturalmente que nem penso nisso. Capricho na barba, não no método, que tornou-se natural.
Faço a barba tomando banho, então não me vejo no espelho, faço a barba cegamente, só com consciência perceptiva e boa atenção. Todo dia. Todo dia sem nenhuma atenção especial pelo fato de ser desde então com a mão esquerda.
Nesses meses, ficando em casa, por vezes vou à cozinha e lavo a louça, lavo o que lá estiver. Reformei a cozinha mas tive preguiça de instalar a máquina de lavar, foram meses sem ela funcionar, embora existente e no vão feito para ela. Há uns dois meses está funcionando, nós a ligamos ao tubo de saída e de entrada, enfim, é novinha embora já tenha um ano. É novinha e pouquíssimo usada dois meses.
Então, ao lavar talheres e pratos eu muitas vezes buscava ser artificialmente canhoto, igual fizera no fazer a barba. Não tive ainda disciplina para fazer disso o normal, mesmo porque são questões interessantíssimas e mais complexas, pois ao lavar louça uma a segura, outra passa nela a espuma de lavagem. É um jogo de atenção interessantíssimo inverter, pois inverte-se as duas, a função das duas mãos e é muito claro que não é um dom ser destro, é um treinamento. Mudando a função das mãos na lavagem de um talher (um segura escolhendo posição e a mudando, outro esfrega) são as duas mãos que precisam de novo treino, não é, como na barba, só a mão e o braço esquerdo.
Pesquisar sobre a nossa vida nos hábitos motores. Parece que não, mas isso é buscar a verdadeira liberdade, pois a verdadeira liberdade é não ser escravo dos muitos treinamentos lá na base de tudo em nós.
Na fotografia treina-se o olhar, o olhar fotográfico não é, o que tantos tolos acreditam, um dom. É algo aprendido. Aprendemos a perceber, aprendemos a ouvir música, aprendemos a estética. Atualmente tenho orbitado muito os reflexos e isso me fez observar sem parar os reflexos em latarias dos carros, que passei a vida sem reparar. O objetivo fotográfico está me reeducando perceptualmente, e isso é um jogo ótimo de jogar, é bom buscar, é bom conseguir, é bom olhar o que conseguimos como novas conquistas do ver. O objetivo fotográfico é o outro lado do objetivo de autoconhecimento, de desmonte do que parece natural para ver-se atrás dessa normalidade perceptiva e tirar daí uma estética fotográfica.
Fui, agora há pouco, buscar o carro na revisão, numa concessionária… que delícia ver os reflexos daquele ambiente nas latarias dos carros lá parados!!!
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